Ana
Lia Rodrigues
Como parte da disciplina Tópicos Especiais
em Poéticas Contemporâneas II: Atrações Temporárias foi proposta aos alunos
pela professora Maria Thereza Azevedo a vivência de uma intervenção urbana. Tal
proposta presumia trabalhar com processos colaborativos e induz à observação de
práticas estéticas pela cidade, a partir de situações não convencionais criadas
em ambiente urbano.
Apropriar-se de espaços, criar situações,
mudar o curso do caminhar e do olhar era o que sugeria Guy Debord com a criação
do Movimento Situacionista (1958). As derivas são, para os situacionistas,
possibilidades de experimentação, tornar o cotidiano urbano – lugar de fragmentação
e banalidade – em um espaço da
revelação, da crítica e da transformação. (SILVA, 2008).
A teoria urbana
situacionista seria então baseada na ideia de construção de situações. O
cotidiano seria a fronteira onde nasceria a alienação, mas também poderia
crescer a participação, assim como o lazer seria o tempo livre para o prazer.
(...) Para tentar chegar a essa construção total de um ambiente, os
situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia e uma
prática ou técnica, a deriva, que estavam diretamente relacionados. A
psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos,
através das derivas, e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos
diante dessa ação, basicamente do caminhar sem rumo na cidade. (JACQUES, 2003).
Inspirados em Debord, nos empenhamos em realizar
a experiência da intervenção e, contudo, dispor uma nova estética na cidade. O
Coletivo à Deriva, desta vez sendo estrelado pelos alunos de mestrado turma
2013, sugere questionamento do cotidiano urbano em uma praça da cidade. Ao nos
apropriarmos da Praça da República em Cuiabá, convidamos os transeuntes a se
renderem a uma pausa para cochilo e repouso. Instalamos a República do Cochilo.
Se a vida é construída de sonhos, sono é
uma intervenção nos sonhos da vida. O que fazemos quando dormimos e repousamos
nosso corpo? Seria revitalizar a máquina realizadora dos nossos sonhos? Alimentar os interespaços que impulsionam à
atuação no dia-a-dia? Seria se ausentar por um momento do estado de vigília e
deixar a mente à deriva?
Figura 01.
Flagrante da intervenção: um participante atuando em momento de cochilo.
Foto: Eveline
Teixeira
A
construção poética desta intervenção artística aconteceu a partir de acordos
coletivos. Embasados em levantamento teórico sobre o situacionismo e
intervenções urbanas, partimos individualmente para observação da cidade,
Cuiabá, a fim de definir um local e planejarmos a ação, uma interferência na
cidade que fosse significativa. Este significado passa pela intenção subjetiva
de cada pessoa envolvida neste grupo resultando em uma criação coletiva.
Este processo de criação possibilita cada um do grupo ter voz,
potencializando a ação a partir de uma rede de sujeitos ativos, criando uma
rede rizomática:
O rizoma opera por variação, por
expansão, conquista, captura, Mapa que deve ser produzido, construído, que pode
ser extraído, conectado, reversível, modificável com múltiplas entradas e
saídas com suas próprias linhas de percurso. Sistema sem centro, sem
hierarquia, sem significado, definida somente pela circulação de estados. (DELEUZE
e GUATTARI, 1997)
Figura 02: Detalhe de uma sombrinha usada na
intervenção. Foto: Ana Lia
Assim, sem hierarquia,
mas em comum acordo, definimos a Praça da República como um dos pontos para
nossa intervenção. A partir de organização prévia, definimos as ações, os materiais
que seriam utilizados em nosso processo. No dia 05 de julho de 2013, sexta- feira, dia
ensolarado e quente, o clima mais habitual de Cuiabá, estávamos na Praça da
República, centro da cidade. Pufes e colchões
infláveis foram cheios e espalhamos pela praça, estendemos telas e penduramos sombrinhas,
objeto símbolo do Coletivo à Deriva. Assim, criávamos uma nova estética para a
praça. Nosso estar na praça mais parecia uma instalação com seus coloridos
pendurados em varais e redes. Estávamos
modificando o ambiente realizando uma interferência estética.
Figura
03. Coloridos pendurados nos varais da Praça.
Andrea Bertoletti, ao analisar a
Arte Relacional (BOURRIAUD, 2009), discorre sobre o pensamento de Bourriaud:
Segundo
Bourriad (2009), arte relacional mantém como alicerce teórico a esfera das
interações humanas e seu contexto social, cujo substrato é calcado pela
intersubjetividade, e seu cerne traduz o “estar junto, ‘encontro’ entre o
observador e o quadro, a elaboração coletiva do sentido” (Bourriaud, 2009, p.21).(...)
Porém, num sentido mais amplo, a estética relacional é representada como um
interstício social. Interstício como um espaço de relações humanas que sugere
possibilidades de troca além da instituída pelo sistema. (BERTOLETTI, 2011).
Portanto, estávamos ali realizando nossa
arte para o público, mas acredito que nossa intenção era mais do que atingir o
outro. Éramos agentes ativos e passivos, atores e espectadores da nossa própria
intervenção, pois não havia comandos ou rótulos que nos direcionasse o
pensamento para a busca de determinado resultado. A proposta era estarmos à
deriva enquanto pesquisadores de teorias e práticas das poéticas contemporâneas.
Sem comandos, sem horário marcado. O
inusitado aconteceu. Estudantes, crianças, moradores de rua, cidadãos comuns, deitaram
e descansaram nos colchões e nas redes que penduramos nas árvores. As crianças
vinham ouvir histórias, moradores de rua vinham contar suas histórias. Aproximavam-se
de nós como se estivéssemos emanando sensação de acolhimento. A praça estava envolvida em uma teia de
intersubjetividade que se expandia à medida que as pessoas se aproximavam,
compartilhando suas histórias e seus momentos.
Figura 04: Crianças ouvem histórias sentadas
nos colchões infláveis. Foto: Ana Lia
Ativamos um “falatório” ou “banca dos
desejos” para dar oportunidade para que as pessoas escrevessem o que quisessem
e pendurassem no varal que armamos, ou ainda, jogar em uma bacia com água para
lavar aquilo que não quisesse mais. A câmera da professora Maria Thereza também
estava aberta para ouvir e ver quem quisesse falar. Com essas vozes, incluímos novas narrativas ao
nosso processo artístico de caráter relacional. Estávamos propondo relações
entre as pessoas e o mundo por intermédio de objetos estéticos.
A essência da
prática artística residiria, assim, na invenção de relações entre sujeitos,
cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum,
enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o mundo,
que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito. (BOURRIAUD,
2009, p. 30-31).
A praça, por si só, já representa um lugar
repleto de significado de dimensões históricas e culturais , serve de abrigo,
de encontro e desencontros. Durante o tempo da intervenção, esse espaço ficou
tomado por tranversalidades nas
relações. Histórias reveladas e expostas nos varais nos contaminavam. Os
casais, a mulher que passou mal, um homem que cheirava cola, entre outras
pessoas e coisas que aconteceram, serviram de material de pesquisa sobre os processos humanos e as
poéticas artísticas que sugerem práticas estéticas na cidade. As situações que
criamos levou ao encontro, à colaboração e a interrelação.
Figura 05: Varal dos desejos. Foto: Eveline Teixeira.
Figura 06: Bacia
para lavar o que não se deseja. Foto: Eveline Teixeira
Figura07:
Professora Maria Thereza, sua câmera e homem dando seu depoimento. Foto: Ana
Lia
A
estética relacional de Borriaud constitui uma teoria em que “a obra de arte não
detém o monopólio da forma; ela é apenas um subconjunto na totalidade das
formas existentes” (BORRIAUD, 2009,p.26).
(...) além do
caráter-relacional intrínseco da obra de arte, as figuras de referência da
esfera das relações humanas agora se tornaram ‘formas’ integralmente
artísticas: assim, as reuniões, os encontros, as manifestações, os diferentes
tipos de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas, os locais de
convívio, em suma, todos os modos de contato e de invenção de relações
representam hoje objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais. (BOURRIAUD,
2009,p.40).
Figura
08: Estudantes em Intervenção na Praça da República. Foto: Eveline Teixeira.
Felix Guattari (1992) afirma que o
porvir da humanidade parece inseparável do devir humano (p.170), pois o planeta
está envolvido em um rizoma multipolar urbano e são as cidades, imensas
máquinas produtoras de subjetividade individual e coletiva. (p172).
Figura 09: Varal
de desejos. Foto: Ana Lia.
Pensar, vivenciar, observar, intervir nas
cidades é motivo para transbordamentos e inovações de caráter artístico entre
outras dimensões do universo humano. Um dos desdobramentos desta intervenção,
resultou na construção de um blog, operando como uma praça virtual que
concentra os relatos das experiências de cada um dos pesquisadores, que, assim como a Praça da Republica, cria uma
rede de espaços subjetivos que fomentam a arte relacional dentro do processo colaborativo
de construção de poéticas artísticas.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
SILVA, Regina Helena da. Cartografias Urbanas: construindo uma
metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos espaços da cidade.
Visões Urbanas - Cadernos PPG-AU/FAUFBA, Vol. V, Número Especial, 2008.
JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,
2003.
GUATTARI, F. Restauração da Cidade Subjetiva. In:
_____________. Caosmose – um novo
paradigma estético. 1ª. Ed. São
Paulo: Ed. 34. 1992, p. 169-179, 1992.
BERTOLETTI, Andrea. Arte Relacional e Ensino de Arte:
possibilidades e desafios. VI Ciclo de Investigações do PPGAV- UDESC, 2011.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI,
Felix. Mil Platôs. São Paulo:
Editora 34, 1997.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Tradução: Denise
Bottman. São Paulo: Martins, 2009.
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