sexta-feira, 30 de agosto de 2013

República do Cochilo


Daniel Pellegrim Sanchez


            Não foi um passeio, tão pouco foi uma viagem, não fez parte de uma rotina de trabalho, de uma caminhada cotidiana, de um momento de lazer ou entretenimento. Havia indignação, mas nas vidraças do globalitarismo[1] lançamos o cochilo, a República do Cochilo. Cochilos (a)tirados em praça pública, contra a rapidez dos fluxos modernos, contra a globalização e suas fábulas, seus espetáculos que encobrem, escamoteiam inúmeras perversidades.

Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2013, fotografia.

             A ideia da realização da República do Cochilo - uma intervenção urbana - surgiu em sala de aula, dentro do programa de pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO - UFMT), onde estudamos as disciplinas de Poéticas Contemporâneas.
            Trabalhamos, junto à professora Dr.ª Maria Thereza Azevedo, com vários textos relacionados as práticas estéticas em espaços urbanos. Dentro das perspectivas das intervenções urbanas, das derivas propostas por Guy Debord, um dos protagonistas do movimento Internacional Situacionista[2], definimos os locais de nossas intervenções. Foram escolhidas a Praça Alencastro e a Praça da República no centro de Cuiabá, capital do estado de Mato Groso e também o dia, 5 de julho de 2013.
            Cada aluno pode colaborar com informações, relatos, experiências, fotos e, a partir disso, definimos que iríamos passar o dia no centro de Cuiabá, sendo que pela manhã iríamos ao Senadinho - apelido dado a um grupo de aposentados que reúnem-se diariamente ao lado da Praça Alencastro para conversas livres - e iríamos interagir com eles buscando discutir pautas da cidade. Depois, nos deslocaríamos pelo centro, caminhando para algum restaurante onde almoçaríamos, finalizando o trajeto na Praça da República[3], onde instauraríamos a República do Cochilo. Todo esse percurso seria realizado com sombrinhas coloridas protegendo-nos da intensa luz e calor do sol.


Daniel Pellegrim Sanchez, República do Cochilo, 2013, fotografia.
               
            O nome cochilo foi deliberadamente escolhido, pois é comum em lugares quentes como Cuiabá a prática do cochilo depois do almoço, o que segundo conhecimentos tradicionais, revigora, previne doenças, melhorando a disposição e a saúde. Depois do almoço, estando o grupo de alunos na Praça da República, que naquele momento portava em seu marco central um cartaz com o nome República do Cochilo, espalhamos colchões de ar, amarramos redes nas árvores, colocamos puffs e cadeiras, tudo isso para uso de quem quisesse mudar de ritmo, parar, sentar-se, cochilar e também desabafar. Falamos em desabafo, pois também propomos a banca do desabafo, qualquer pedestre poderia parar e desabafar, escrevendo em papéis suas propostas, desejos, angústias etc. Papéis que algumas vezes iam para uma bacia com água e outras eram pendurados em varais.

Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2013, fotografia.

            Os varais receberam também outros objetos, como as sombrinhas, uma tela artística e um galho de ecsória[4].
           Um galho sem terra. Ao fundo, a escultura de um índio sem território que agoniza no colo da justiça... Eu estava deitado, "cochilando", quando uma mulher que passava a passos largos, com pressa, colocou o tal galho no varal. Pareceu-me obra do acaso. O galho ficou por pouco tempo, o suficiente para que eu tirasse uma única fotografia, logo, talvez por não possuir escrita, nem o trabalho/parada/pensamento dos outros "desabafos", o galho foi retirado do varal. Vi aquele galho como um desabafo do acaso, passageiro, censurado, que rouba a cena por alguns instantes e some. Foi como se a pequena sombra do galho, por um momento, entrasse em sincronia com o passeio das sombrinhas[5] para aliar-se a suas intenções.  

Daniel Pellegrim Sanchez, Desabafo do acaso, 2013, fotografia.

Daniel Pellegrim Sanchez, Não por acaso, 2013, fotografia.

            Sombrinhas que querem, pedem sombras para a cidade. O passeio de sombrinhas incitou-nos a pensar sobre o tamanho e a quantidade de sombras. A falta de árvores em Cuiabá é facilmente constatada, basta esquadrinhar a cidade a pé que o sol a pino faz a denúncia. Quando elas existem, são pequenas, com grandes espaços entre uma e outra. Comerciantes reclamam que elas encobrem as fachadas e fazem alguma sujeira; políticos dizem das dificuldades de plantio alegando falta de espaço, as dificuldades com o período de seca, que o solo é frágil e as tempestades com vento derrubam as árvores tornando a manutenção inviável, onerosa etc.; as podas realizadas pela companhia de energia é grosseira, muitas vezes acabando com as copas das árvores. Também constatamos que, com o crescimento das cidades, novos empreendimentos surgem a todo momento e a lógica de construção moderna, diante desta grande especulação imobiliária, costuma ser predatória, retirando toda a cobertura arbórea do terreno, cortando-se as árvores grandes, centenárias, para, noutros, pequenos canteiros, colocarem pequenos arbustos, com poucos resultados do ponto de vista ambiental. Isso também ocorre com as soluções modernas de mobilidade urbana, como vimos com a implantação do veículo leve sobre trilho (VLT), onde muitas árvores foram cortadas e ainda não sabemos se haverá compensação para esses danos ambientais.

Benedito Nunes, O pássaro e o eletricista, OST, 110X95, 1998.

            Não estamos desprezando as pequenas árvores, os arbustos, mas temos que pensar que árvores grandes, com copas frondosas, além de possibilitarem a liberação visual das fachadas dos comércios, através da poda dos galhos baixos, produzem de forma mais eficiente os resultados de esfriamento e a qualidade de vida necessários na região. Há cidades no Brasil onde as ruas são verdadeiros túneis verdes, e isso não atrapalha o comércio, tão pouco o trânsito, ao contrário, as pessoas procuram esses locais, pois a mobilidade é mais agradável, existe sombra e mais vida.
            Existe espaço, existe tecnologia, existem árvores de grande porte que se adaptam bem a essas localidades, ao clima, é preciso paciência e o cuidado para que elas cresçam. Temos a notícia que é possível fazer covas cuja profundidade, o preparo e a forma de plantio fazem com que a árvore ganhe sustentação para resistir a eventuais ventanias e também ao período de seca. A disputa do espaço aéreo com os fios é um dos principais problemas na produção de sombras, nesses casos a principal solução tem sido o rebaixamento da fiação. Essa alternativa embora tenha um custo inicial elevado tem uma série de vantagens a médio e longo prazo. Em municípios onde não é possível tais investimentos, há como ocupar o lado oposto aos postes de eletricidade, ou mesmo os canteiros centrais das vias de mão dupla, em algumas cidades brasileiras grandes árvores ocupam espaços mínimos em canteiros centrais. Com os cuidados certos e tecnologia é possível também a coexistência dos fios e das copas das árvores. Em muitos locais, o corte de determinados tipos de árvores foram proibidos, etc.
            Árvores de grande porte garantem sombreamento, seja na proteção da insolação indesejada, seja na redução do consumo de energia, seja na matização das superfícies pavimentadas ou construídas, criando o efeito de filtragem dinâmica. (MASCARO, s/d).
            O passeio com as sombrinhas nos provocou a reflexão sobre mobilidade urbana, qualidade de vida, pois sabemos que "juntamente com o esfriamento pela transpiração, as sombras das árvores podem ajudar a refrescar os locais, evitando o aquecimento das superfícies artificiais que estão sob a cobertura arbórea. Estes efeitos podem reduzir a temperatura do ar em até 5ºC"[6].
            A arborização pública não só é uma ótima estratégia de sustentabilidade urbana, mas em locais quentes como a baixada cuiabana, trata-se de uma opção necessária para a melhoria da qualidade de vida, afinal, não é preciso ser climatologista para prever que, com os modelos adotados na construção civil e com a crescente diminuição de áreas e espaços "verdes", as cidades da baixada tendem a ter dias em que o nível de calor poderá atingir intensidades impróprias para o trabalho, para a vida. Pensamos que o plantio, assim como o desenvolvimento de tecnologias de plantio e manutenção de árvores deve estar sempre em pauta. Árvores em praças e parques, com um manejo adequado, bem cuidadas, incentivam a interação social, a ocupação dos espaços públicos e, de acordo com Jeremy Mennis (apud DUFFY, 2013, s/p), "o aumento de áreas de vegetação nas cidades não só melhora os indicadores ambientais e a qualidade de vida, como também pode ajudar a reduzir os níveis de criminalidade.”
            A artificialização do clima, que nessas localidades podem atingir níveis espetaculares, pode amenizar, adiar o problema, mas essa mesma artificialização cria outros problemas, a exemplo do ressecamento do ar em ambientes refrigerados, do choque térmico ao sair e entrar nesses ambientes, de problemas respiratórios devido ao acúmulo de pó nos equipamentos e dutos de ventilação, do encarecimento do custo de vida devido ao consumo de energia desses equipamentos, dos impactos ambientais na geração dessa energia e no descarte desses mesmos equipamentos etc.
            Contra as árvores temos a sociedade do espetáculo com sua comunicação visual comercial agressiva, com a especulação imobiliária, com ruas congestionadas e veículos motores semi-vazios, com o desmatamento ilegal, com o problema do custo das passagens dos ônibus e futuramente do VLT, com a falta de boas calçadas para caminhadas e ciclovias etc. A tudo isso soma-se a exploração irresponsável dos recursos naturais onde, em nome do lucro, tudo é possível, tudo é permitido. Desse modo, no interior do país, a lógica globalitarista se esconde, se expande e encontra pouca oposição.
             
Daniel Pellegrim Sanchez, Justiça de salto alto, 2013, fotografia. Escultura de Jonas Corrêa.


           Percebemos que no interior do Brasil, no centro da América do Sul, a modernidade que aqui chega tardiamente, segue seu projeto rumo a completude, muitas vezes produzindo resignação, conformismo, ou como diria Milton Santos, uma perversa tranquilidade diante das fábulas globais criadas por uma lógica que privilegia o lucro, a competividade de massacre que acentua e aprofunda desigualdades sócioespaciais (SANTOS, 2005, p.253).
            "Cochilando" flagramos os antagonismos que são comuns a muitos centros históricos de cidades brasileiras. Na Praça da República, a catedral moderna que foi (im)posta sobre a colonial evidencia contradições. A sucessão de diferentes concepções arquitetônicas e urbanísticas vista em espaços reduzidos de praças do centro urbano de Cuiabá, somada ao ritmo constante da passagem de veículos e pedestres, não só nos proporciona uma reflexão sobre a sucessão de técnicas e ritmos, mas também revela a realidade da "interdependência universal dos lugares" (SANTOS, 2005, p. 255). Interdependência que se faz por meio de lógicas verticais impostas pela especulação financeira internacional, que está ligada à realidade informacional, ao mercado globalizado.
            As praças centrais de Cuiabá também revelam as realidades profundas da colonialidade. O centro da cidade, diferentemente do centro de outras cidades ribeirinhas, não foi feito à margem de um rio. Do rio Cuiabá, não se vê o centro da cidade e vice versa, o centro está acerca de dois quilômetros do rio, caminho por onde chegavam e saíam os primeiros colonizadores. O centro foi escondido, estrategicamente invisibilizado como forma de assegurar o território e a retirada do ouro que ali se fazia abundante.

"Olhando suas plantas setecentistas somos possuídos pela impressão de que, ao ser edificada, se escolheu um lugar estrategicamente resguardado, escondido. O rio servia de caminho apenas para aqueles que sabiam como chegar". (COSTA, 2000, p.27)
           
            Não há mais ouro no centro de Cuiabá, mas o território do estado de Mato Grosso é grande e rico em recursos naturais. Muitos desses recursos naturais estão em territórios indígenas, quilombolas, em áreas de preservação ambiental etc. e as tensões nesses territórios são constantes. A invisibilidade do território, o encobrimento das perversidades exploratórias do ouro, que pouco deixou para o local e que antes se dava pelo simples afastamento da cidade do campo visual de quem passava pelo rio, hoje é feito por dispositivos modernos de colonialidade, a exemplo do controle da informação. A exploração da terra, dos recursos naturais continua deixando poucos benefícios para o local em relação às riquezas que são extraídas.
            Diante da realidade informacional, Santos alerta para as manobras e o controle imposto pela grande finança (grandes corporações internacionais, bancos, governos mundiais etc.), que tem a informação como instrumento de dominação e colonização. De acordo com Santos,  a informação é o grande instrumento do processo de globalitarismo e da produção de novas formas de totalitarismo de vida, porém, quando manejada por pequenos grupos, de forma inteligente, podem produzir exatamente o efeito oposto[7].
            Desse modo, Milton Santos dá seu grito do território[8], ação afirmativa que visa responder às verticalidades perversas da globalização, se opor aos fundamentalismos do consumo irresponsável através de processos de resistência que partem dos lugares onde tais perversidades foram impostas. Imposições que ficam hiper-evidentes nessas regiões diante, por exemplo, do ruralismo neoliberal, que embora tenha alta produtividade, utiliza-se de um modelo de produção ligado à indústria da guerra, com a utilização de grandes quantidades de veneno, de sementes transgênicas que dependem de ativações químicas, com financiamentos vinculados aos grandes bancos. Soma-se a tudo isso o desflorestamento ilegal.
            Santos, buscando o efeito comunicacional oposto à informação globalitarista, observa como as sociedades periféricas se estruturam, desvelando suas potencialidades produtivas, seus modelos sustentáveis de produção, seja na construção de moradias, na agricultura, na circulação das pessoas, nos comportamentos lúdicos construtivos, nas relações interpessoais, nas formas de manifestação e constata que, embora em muitos casos exista escassez de objetos e materiais, estas comunidades produzem respostas originais, com o uso criativo desses mesmos objetos e tecnologias, conseguindo globalizar um olhar outro. Santos fala que a produção criativa dessas comunidades muitas vezes é invisibilizada devido ao seu caráter político, de oposição à racionalidade única da modernidade, desse modo, a profunda relação com o local cria formas próprias de racionalidade e geralmente estes enunciados são contrários ou são críticos à lógica da dependência da ordem global. A arte, a movimentação cultural pode dar visibilidade crítica ao espetáculo globalitarista, produzindo enunciados de oposição, e isso costuma ser veementemente combatido, seja através da cooptação do(a) artista para a "mesma arte", seja provocando isolamentos, difamações, desqualificações e até torturas psicológicas.
            Com as respostas das periferias, do lado de cá (sul do mundo), Santos prevê um novo período histórico, que ele chama de período popular da história. Para Santos, devemos "pensar na construção de novas horizontalidades que permitirão, a partir da base da sociedade territorial, encontrar caminhos que nos libere da maldição da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construirmos uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade" (SANTOS, 2005, p. 256).

Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2013, fotografia.
           
            Dignidade, cidadania e solidariedade são assuntos centrais na obra de Milton Santos, para ele “O Brasil jamais teve cidadãos, nós, a classe media, não queremos direitos, nos queremos privilégios, e os pobres não tem direitos, não há, pois, cidadania neste pais, nunca houve!” [9]. Santos afirma que diante da geopolítica que se instalou, proposta pelos economistas e imposta pela grande mídia, o debate pela civilização foi trocado pelo debate econômico, e esse hiper-reducionismo se dá através do pensamento único, onde uma parcela muito pequena de privilegiados aceita tranquilamente a fome, as injustiças, desigualdades, ou seja, não são cidadãos, não se sentem co-responsáveis pela coletividade.
            Assim, a "república que cochila", pode ser também a república que aceita tranquilamente o esvaziamento do conceito de democracia, que foge ao discurso da cidadania e da dignidade humana, que se vende aos interesses da grande finança, que cede aos lobbies e às pressões da grande mídia. Cochilo que ocorre diante da colonialidade do poder, do saber e do ser[10], diante do lado escuro do modernidade (MIGNOLO, 2011), que faz esquecermos o território, a vizinhança e a solidariedade. O cochilo da república se dá, muitas vezes, embalado em redes de "homens rápidos" (SANTOS, 2010). Sobre homens e seus ritmos Milton Santos (2010, p. 594) diz:

Durante séculos, acreditávamos que os homens mais velozes detinham a inteligência do mundo. A literatura que glorifica a potência incluiu a velocidade como essa força mágica que permitiu à Europa civilizar-se primeiro e empurrar, depois, a sua civilização para o resto do mundo. Agora, estamos descobrindo que, nas cidades, o tempo que comanda, ou vai comandar, é o tempo dos homens lentos. Na grande cidade, hoje, o que se dá é tudo ao contrário. A força é dos "lentos" e não dos que detêm a velocidade elogiada por Virilio em delírio, na esteira de um Valéry sonhador. Quem, na cidade, tem mobilidade - e pode percorrê-la e esquadrinhá-la - acaba por ver pouco da cidade e do mundo. Sua comunhão com as imagens, frequentemente pré-fabricadas, é a sua perdição. Seu conforto, que não desejam perder, vem, exatamente, do convívio com essas imagens. Os homens "lentos", para quem tais imagens são miragens, não podem, por muito tempo, estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo as fabulações. É assim que eles escapam ao totalitarismo da racionalidade, aventura vedada aos ricos e as classes médias. Desse modo, acusados por uma literatura sociológica repetitiva, de orientação ao presente e de incapacidade de prospectiva, são os pobres que, na cidade, mais fixamente olham para o futuro.

            Contra o cochilo da república, Milton Santos propôs manifestações populares, como as acontecidas a partir de junho de 2013 em todo Brasil, um período popular da história, propôs também a ocupação de territórios, dos espaços públicos, a comunicação alternativa e também trabalharmos ritmos outros.

"Tudo, todo o trabalho, todo o som
Cada passo que damos é ritmo
Cada palavra que falamos é ritmo
Tudo é ritmo"[11]

            A intervenção urbana no centro de Cuiabá, não só nos proporcionou um outro olhar sobre a importância da sombra em espaços urbanos, mas também um encontro com os pensamentos de Milton Santos. Pensamentos que nos dão ferramentas para nos reconhecer enquanto opositores aos totalitarismos do pensamento único, um pensamento que encontra espaço utilizando-se de dispositivos perversos de colonialidade a exemplo do racismo, do sexismo, do patriarcalismo, do hiper-reducionismo ao lucro, muitas vezes explorando o trabalhador local, com pouca responsabilidade ou retorno social, degradando de maneira insustentável os recursos naturais. Reconhecendo-nos e conhecendo o território em que vivemos, há sempre a possibilidade de produzirmos respostas, seja nas artes, a exemplo da intervenção urbana que foi utilizada para o texto desse trabalho, seja buscando soluções para os problemas da cidade, do campo, seja nos relacionando de forma solidária e condescendente.

Daniel Pellegrim Sanchez, Passeio de sombrinhas, 2013, fotografia.

BIBLIOGRAFIA:
COSTA, Maria de Fátima; DIENER, Pablo. Cuiabá: Rio, Porto, Cidade. Cuiabá : Edição dos autores, 2000.
MIGNOLO, Walter D. The darker side of western modernity. Global Futures, Decolonial Options. Duke University Press, Durham & London, 2011.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo : Cortez, 2010.
SANTOS, Milton. O retorno do território. En: OSAL : Observatório Social de América Latina. Ano 6, no. 16 (jun.2005- ). Buenos Aires : CLACSO, 2005.
_______________. O lugar e o cotidiano. In:. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do Sul. São Paulo : Cortez, 2010

SITES:

DUFFY, James. Study examines deterrent effect of urban greening on crime. Temple University. Fev. 2013. Disponível em<http://news.temple.edu/news/2013-02-11/study-examines-deterrent-effect-urban-greening-crime> Acesso em 15/08/20013.
JACQUES, Paola Berenstein. Urbanismo à deriva: o pensamento crítico situacionista. Anais - SHCU, Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Vol. 7, n. 1, 2002. Disponível em:< http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/shcu/article/view/882/857> Acesso em 15/08/20013.
MASCARO, Juan José; DIAS, Ariane Pedrotti de Ávila; GIACOMIN, Suelen Debona: Arborização Pública como Estratégia de Sustentabilidade Urbana. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo – Faculdade de Engenharia e Arquitetura - Disponível em:<http://www.usp.br/nutau/CD/29.pdf> Acesso em 15/08/20013.
ROEBERTS, Thomas, LEEUWENBERG, Floris. Foli: Não há movimento sem rítmo. Scott Underwood escreve: "Foli (a palavra Malinke para o ritmo) é um filme de 11 minutos dirigido por Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg que mostra a vida diária rítmica de Baro, uma aldeia Malinke na Guiné. . Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=lVPLIuBy9CY> Acesso em 21/08/2013.
TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá. Documentário de Silvio Tendler. Rio de Janeiro. Caliban Produções. 2006 Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM> Acesso em 21/08/2013.


[1]Para Milton Santos o globalitarismo é um neologismo que representa a globalização somada ao totalitarismo, ou seja, a globalização perversa e totalitária em que vivemos. "Eu chamo a globalização de globalitarismo, porque estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a atual globalização, conduzindo-nos para formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem dependentes, como se fossem escravos de novo. Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona. Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político".Entrevista concedida a José Corrêia Leite, editor do Jornal Em Tempo. Disponível em:<http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=2412> Acesso em 21/08/20013.
[2] A IS (Internacional Situacionista) - grupo de artistas, pensadores e ativistas situcionistas - lutavam contra o espetáculo, a cultura espetacular e a espetacularização em geral, ou seja, contra a não-participação, a alienação e a passividade da sociedade. Eles acreditavam que o principal antídoto contra o espetáculo seria o seu oposto: a participação ativa dos indivíduos em todos os campos da vida social, principalmente naquele da cultura. O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma consequência da importância dada por estes ao meio urbano como terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida cotidiana moderna. A crítica urbana situacionista continuaria assim, em sua essência, pertinente ainda hoje. Assim como a sua proposta principal de participação dos cidadãos na construção das cidades, sobretudo se pensarmos na atual “espetacularização” do espaço urbano (JACQUES, 2002).
[3] Conforme sinalização posta no local, a Praça da República foi fundada em 1722, juntamente com a Igreja Bom Jesus de Cuiabá, a mando do capitão-mor Jacinto Barbosa Lopes quando Miguel Sutil descobriu ouro no córrego da Prainha. Em 1922, bicentenário da capital, a praça passou por reformas e recebeu iluminação elétrica, passando a chamar-se Praça da República.
[4] Planta cultivada em um dos canteiros da praça, que se adapta bem ao calor, necessita de poucos cuidados e produz flores com várias colorações.
[5] Intervenção urbana do Coletiva à Deriva que pede mais sombras para Cuiabá.
[6]MASCARO, Juan José; DIAS, Ariane Pedrotti de Ávila; GIACOMIN, Suelen Debona: Arborização Pública como Estratégia de Sustentabilidade Urbana. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo – Faculdade de Engenharia e Arquitetura - Disponível em:<http://www.usp.br/nutau/CD/29.pdf> Acesso em 15/08/2013.
[7]TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá. Documentário de Silvio Tendler. Rio de Janeiro. Caliban Produções. 2006 Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM> Acesso em 21/08/2013.
[8] De acordo com a Prof. Maria Adélia Aparecida de Souza (2005) o Grito do Território é uma espécie de revanche ao globaritarismo,  ou seja, ações que a partir do território e dos lugares irão gerar um novo tempo em que Milton Santos denominou de período popular da história, período esse mais solidário.
[9] TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá. Documentário de Silvio Tendler. Rio de Janeiro. Caliban Produções. 2006. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM> Acesso em 21/08/2013.
[10] Veja-se SANTOS 2010 para um análise mais aprofundado.
[11] FOLI: Não há movimento sem ritmo. Scott Underwood escreve: "Foli (a palavra Malinke para o ritmo) é um filme de 11 minutos dirigido por Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg que mostra a vida diária rítmica de Baro, uma aldeia Malinke na Guiné. Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=lVPLIuBy9CY> Acesso em 21/08/2013.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Conversando com Guy Debord naquela praça... aquela que fica na frente da igreja... aquela que é cheia de árvores.


Anna Natale

Este é o meu manifesto e será escrito em primeira pessoa.
Abrir os olhos, virar de lado, fechar os olhos, despertador, abrir os olhos, cambalear até o chuveiro, a água nunca está quente o suficiente, quero as roupas menos amassadas, café-da-manhã? Não, já estou atrasada.
Vida cotidiana de acordo com Henry Lafebvre é: o que subsiste quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas.
Pego esta afirmação e transformo em pergunta, pra mim e para você:
O que subsiste em você quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas?
Hmmmm.
A criação deste texto se torna uma intervenção em mim mesma.
Hmmmm.
E então... o que sobra?
Sobra a inércia, sobra o não fazer, sobra o inesperado, sobra a espontaneidade.
Paro de digitar, olho para direita e vejo o meu quadro branco e está escrito “amor e espontaneidade”.
PARE! VOLTE! FOCO! REDIJA! SEM ERROS! É UM ARTIGO! SEJA FORMAL! PUBLIQUE! SIGA A SANTA CARTILHA LATTES E CAPES!
Mais uma chance:
O que subsiste em você quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas?
Guy Debord quando sentado na mureta me disse: A vida quotidiana se encontra sempre em outra parte, entre os outros, e em todo caso, entre as classes não-sociólogas da população.
E então, lá fomos nós:
Missão: Conseguir tornar a praça confortável o bastante para que as pessoas se sentissem livres para descansar e se expressar.
Alvos:
(1) Atrasados – Aqueles que utilizam a praça como forma para diminuir a distância até o destino desejado.
(2) Matadores de aulas – Jovens e adultos que vivenciam na praça um refúgio para fugirem das aulas e do trabalho.
(3) Meditadores – Pessoas que simplesmente aproveitam a praça e relaxam nela.
(4) Resolvi ir ao centro hoje – Aqueles que não costumam passar pelo centro e muito menos pela praça, mas passaram por ali no dia e na hora certa.
Munição: Redes, colchões de ar, revistas de arte e cultura, pufs, varal, pregadores, folhas em branco, canetas e bacia com água.
Armados de guarda-chuvas até os dentes fomos em direção a praça, éramos observados, éramos suspeitos. No ambiente de diversidade a nossa diversidade se tornou estranha. Olhares nos acompanhavam e nos interrogavam em silêncio. No trajeto me via como uma cientista, daquelas que estudam os animais. Cadê o meu jaleco e a minha prancheta? Eu tinha o poder de observar e analisar aquelas cobaias em laboratório.
...certos intelectuais se vangloriam assim de uma ilusória participação pessoal no setor dominante da sociedade, através da possessão de uma ou mais especializações culturais; isso os situa em primeiro plano, para se dar conta do ato seguido de que o conjunto desta cultura dominante está sensivelmente apoiado. Mas qualquer que seja o juízo que se pronuncie sobre a coerência dessa cultura ou sobre o interesse de seus aspectos, a alienação que ela impôs aos intelectuais em questão consiste em fazê-los crer, desde o céu dos sociólogos, que estes se encontram completamente fora dessa vida quotidiana de qualquer povo, ou situados num lugar por demais elevado na escala dos poderes humanos, como se estes mesmos não fossem igualmente pobres.
E então fui quebrada, o reconhecimento da minha própria ignorância foi jogada em mim como toda aquela areia que dança e povoa as calçadas, carros e roupas em toda a cidade de Cuiabá. O estudo de caso não eram eles, éramos nós. Quem eu era na praça? Quem eu achava que era? Quem eu tinha me tornado? Se eu não era mais a cientista eu poderia ser a meditadora, não poderia ser os dois? Nunca estive naquela praça antes, poderia transformá-la como parte do meu quotidiano?
A vida quotidiana é a medida de todas as coisas: do cumprimento, ou melhor, do descumprimento das relações humanas, do uso do tempo vivido, da busca da arte, da política revolucionária.
Relações humanas... hmmmm... é melhor eu sublinhar isso. E então me dei conta de que naquela praça arborizada, com redes, colchões e pessoas rindo eu tinha levado as minhas próprias barreiras, eu não queria me relacionar, eu não queria me despir deixando de lado a merda da seriedade. O olhar observador que finge ser superior estava ativado de forma sutil, quase camuflada. Eu achava que estava neutra naquele ambiente, mas fui ingênua. Na praça eu era palavras, eu representava palavras do que deveria ser, do que deveria ter me tornado e de todos os outros “não” e “não pode” que estavam impregnados em mim. Eu estava na minha prisão, na minha miséria.
(...) a vida quotidiana está organizada dentro dos limites de uma pobreza escandalosa. (...) é uma pobreza imposta em cada instante pela força e a violência de uma sociedade dividida em classes; uma pobreza historicamente organizada de acordo com as necessidades históricas da exploração. O uso da vida quotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido está condenado pelo reino da carência de tempo livre; e carência dos possíveis usos deste tempo livre.
Me vi sem conseguir entender como aproveitar o dia. Estava sempre alerta. O excesso de espaço e de ar agradável me mostraram o quanto eu me sentia segura ao redor de livros e embaixo do ar-condicionado. Cada vez menos humana.
Esta sociedade tende a atomizar as pessoas convertendo-as em consumidores isolados, e a impedir toda comunicação. A vida quotidiana se converte em vida privada, domínio da separação e do espetáculo (...) as novas cidades de nossos dias demonstram claramente a tendência totalitária que caracteriza a organização da vida pelo capitalismo moderno: nelas os indivíduos isolados (isolados geralmente na estrutura da célula familiar) contemplam como se reduz a sua vida à pura trivialidade do repetitivo, diante da absorção obrigatória de um espetáculo igualmente repetitivo.


DEBORD, Guy. Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana. 1961. DEWEY, J. Reconstrução em filosofia. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nacional, 1959.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Praça da República- Processos colaborativos de pesquisa em práticas estéticas nos espaços urbanos.


Ana Lia Rodrigues
Como parte da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II: Atrações Temporárias foi proposta aos alunos pela professora Maria Thereza Azevedo a vivência de uma intervenção urbana. Tal proposta presumia trabalhar com processos colaborativos e induz à observação de práticas estéticas pela cidade, a partir de situações não convencionais criadas em ambiente urbano.
Apropriar-se de espaços, criar situações, mudar o curso do caminhar e do olhar era o que sugeria Guy Debord com a criação do Movimento Situacionista (1958). As derivas são, para os situacionistas, possibilidades de experimentação, tornar o cotidiano urbano – lugar de fragmentação e banalidade  – em um espaço da revelação, da crítica e da transformação. (SILVA, 2008).
A teoria urbana situacionista seria então baseada na ideia de construção de situações. O cotidiano seria a fronteira onde nasceria a alienação, mas também poderia crescer a participação, assim como o lazer seria o tempo livre para o prazer. (...) Para tentar chegar a essa construção total de um ambiente, os situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia e uma prática ou técnica, a deriva, que estavam diretamente relacionados.   A psicogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas, e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação, basicamente do caminhar sem rumo na cidade. (JACQUES, 2003).
Inspirados em Debord, nos empenhamos em realizar a experiência da intervenção e, contudo, dispor uma nova estética na cidade. O Coletivo à Deriva, desta vez sendo estrelado pelos alunos de mestrado turma 2013, sugere questionamento do cotidiano urbano em uma praça da cidade. Ao nos apropriarmos da Praça da República em Cuiabá, convidamos os transeuntes a se renderem a uma pausa para cochilo e repouso.  Instalamos a República do Cochilo.
Se a vida é construída de sonhos, sono é uma intervenção nos sonhos da vida. O que fazemos quando dormimos e repousamos nosso corpo? Seria revitalizar a máquina realizadora dos nossos sonhos?  Alimentar os interespaços que impulsionam à atuação no dia-a-dia? Seria se ausentar por um momento do estado de vigília e deixar a mente à deriva?

Figura 01. Flagrante da intervenção: um participante atuando em momento de cochilo.
Foto: Eveline Teixeira
            A construção poética desta intervenção artística aconteceu a partir de acordos coletivos. Embasados em levantamento teórico sobre o situacionismo e intervenções urbanas, partimos individualmente para observação da cidade, Cuiabá, a fim de definir um local e planejarmos a ação, uma interferência na cidade que fosse significativa. Este significado passa pela intenção subjetiva de cada pessoa envolvida neste grupo resultando em uma criação coletiva.  Este processo de criação possibilita cada um do grupo ter voz, potencializando a ação a partir de uma rede de sujeitos ativos, criando uma rede rizomática:
O rizoma opera por variação, por expansão, conquista, captura, Mapa que deve ser produzido, construído, que pode ser extraído, conectado, reversível, modificável com múltiplas entradas e saídas com suas próprias linhas de percurso. Sistema sem centro, sem hierarquia, sem significado, definida somente pela circulação de estados. (DELEUZE e GUATTARI, 1997)
 Figura 02: Detalhe de uma sombrinha usada na intervenção. Foto: Ana Lia
Assim, sem hierarquia, mas em comum acordo, definimos a Praça da República como um dos pontos para nossa intervenção. A partir de organização prévia, definimos as ações, os materiais que seriam utilizados em nosso processo.  No dia 05 de julho de 2013, sexta- feira, dia ensolarado e quente, o clima mais habitual de Cuiabá, estávamos na Praça da República, centro da cidade.  Pufes e colchões infláveis foram cheios e espalhamos pela praça, estendemos telas e penduramos sombrinhas, objeto símbolo do Coletivo à Deriva. Assim, criávamos uma nova estética para a praça. Nosso estar na praça mais parecia uma instalação com seus coloridos pendurados em varais e redes.  Estávamos modificando o ambiente realizando uma interferência estética.

Figura 03. Coloridos pendurados nos varais da Praça.
            Andrea Bertoletti, ao analisar a Arte Relacional (BOURRIAUD, 2009), discorre sobre o pensamento de Bourriaud:
Segundo Bourriad (2009), arte relacional mantém como alicerce teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social, cujo substrato é calcado pela intersubjetividade, e seu cerne traduz o “estar junto, ‘encontro’ entre o observador e o quadro, a elaboração coletiva do sentido” (Bourriaud, 2009, p.21).(...) Porém, num sentido mais amplo, a estética relacional é representada como um interstício social. Interstício como um espaço de relações humanas que sugere possibilidades de troca além da instituída pelo sistema. (BERTOLETTI, 2011).
Portanto, estávamos ali realizando nossa arte para o público, mas acredito que nossa intenção era mais do que atingir o outro. Éramos agentes ativos e passivos, atores e espectadores da nossa própria intervenção, pois não havia comandos ou rótulos que nos direcionasse o pensamento para a busca de determinado resultado. A proposta era estarmos à deriva enquanto pesquisadores de teorias e práticas das poéticas contemporâneas.
Sem comandos, sem horário marcado. O inusitado aconteceu. Estudantes, crianças, moradores de rua, cidadãos comuns, deitaram e descansaram nos colchões e nas redes que penduramos nas árvores. As crianças vinham ouvir histórias, moradores de rua vinham contar suas histórias. Aproximavam-se de nós como se estivéssemos emanando sensação de acolhimento.  A praça estava envolvida em uma teia de intersubjetividade que se expandia à medida que as pessoas se aproximavam, compartilhando suas histórias e seus momentos.

 Figura 04: Crianças ouvem histórias sentadas nos colchões infláveis. Foto: Ana Lia
Ativamos um “falatório” ou “banca dos desejos” para dar oportunidade para que as pessoas escrevessem o que quisessem e pendurassem no varal que armamos, ou ainda, jogar em uma bacia com água para lavar aquilo que não quisesse mais. A câmera da professora Maria Thereza também estava aberta para ouvir e ver quem quisesse falar.  Com essas vozes, incluímos novas narrativas ao nosso processo artístico de caráter relacional. Estávamos propondo relações entre as pessoas e o mundo por intermédio de objetos estéticos.
A essência da prática artística residiria, assim, na invenção de relações entre sujeitos, cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito. (BOURRIAUD, 2009, p. 30-31).

A  praça, por si só, já representa um lugar repleto de significado de dimensões históricas e culturais , serve de abrigo, de encontro e desencontros. Durante o tempo da intervenção, esse espaço ficou tomado por tranversalidades  nas relações. Histórias reveladas e expostas nos varais nos contaminavam. Os casais, a mulher que passou mal, um homem que cheirava cola, entre outras pessoas e coisas que aconteceram, serviram de material  de pesquisa sobre os processos humanos e as poéticas artísticas que sugerem práticas estéticas na cidade. As situações que criamos levou ao encontro, à colaboração e a interrelação.
Figura 05: Varal dos desejos. Foto: Eveline Teixeira.

Figura 06: Bacia para lavar o que não se deseja. Foto: Eveline Teixeira


Figura07: Professora Maria Thereza, sua câmera e homem dando seu depoimento. Foto: Ana Lia

 A estética relacional de Borriaud constitui uma teoria em que “a obra de arte não detém o monopólio da forma; ela é apenas um subconjunto na totalidade das formas existentes” (BORRIAUD, 2009,p.26).
(...) além do caráter-relacional intrínseco da obra de arte, as figuras de referência da esfera das relações humanas agora se tornaram ‘formas’ integralmente artísticas: assim, as reuniões, os encontros, as manifestações, os diferentes tipos de colaboração entre as pessoas, os jogos, as festas, os locais de convívio, em suma, todos os modos de contato e de invenção de relações representam hoje objetos estéticos passíveis de análise enquanto tais. (BOURRIAUD, 2009,p.40).


Figura 08: Estudantes em Intervenção na Praça da República. Foto: Eveline Teixeira.

Felix Guattari (1992) afirma que o porvir da humanidade parece inseparável do devir humano (p.170), pois o planeta está envolvido em um rizoma multipolar urbano e são as cidades, imensas máquinas produtoras de subjetividade individual e coletiva. (p172).


Figura 09: Varal de desejos. Foto: Ana Lia.
             Pensar, vivenciar, observar, intervir nas cidades é motivo para transbordamentos e inovações de caráter artístico entre outras dimensões do universo humano. Um dos desdobramentos desta intervenção, resultou na construção de um blog, operando como uma praça virtual que concentra os relatos das experiências de cada um dos pesquisadores,  que, assim como a Praça da Republica, cria uma rede de espaços subjetivos que fomentam a arte relacional dentro do processo colaborativo de construção de poéticas artísticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SILVA, Regina Helena da. Cartografias Urbanas: construindo uma metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos espaços da cidade. Visões Urbanas - Cadernos PPG-AU/FAUFBA, Vol. V, Número Especial, 2008.
JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
GUATTARI, F. Restauração da Cidade Subjetiva. In: _____________. Caosmose – um novo paradigma estético. 1ª. Ed. São Paulo: Ed. 34. 1992, p. 169-179, 1992.
BERTOLETTI, Andrea. Arte Relacional e Ensino de Arte: possibilidades e desafios. VI Ciclo de Investigações do PPGAV- UDESC, 2011.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1997.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Martins, 2009.

Experiência de uma intervenção na Praça da República em Cuiabá




Neemias Souza Alves

Nas cidades grandes nota-se uma paisagem diferente daquela das cidades do interior. Enquanto a primeira apresenta um trânsito abarrotado de carros, motos, e pedestres na segunda percebe-se poucos veículos pelas ruas e a maioria das pessoas andam a pé ou de bicicleta. Na cidade grande estão realçados os edifícios, avenidas e grandes centros comerciais; enquanto que na cidade pequena tem-se poucos prédios, as ruas são estreitas e pequenos comércios estão espalhados pela cidade. Essas características refletem modos de vida diferentes.
Na cidade grande tudo é muito acelerado. As pessoas estão cada vez mais atarefadas e as suas necessidades não cabem no seu tempo. Corre-se de um lugar a outro em um ritmo que transforma a vida em atividades obrigatórias. Seres humanos tornaram-se escravos do tempo e do trabalho.
A velocidade com que tudo acontece torna mecânico e desatento o nosso olhar sobre a cidade, o que acabou sendo revelado no desenvolvimento de uma atividade de intervenção na Praça da República, na cidade de Cuiabá, quando alunos do mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea, orientados pela professora[1] da disciplina de Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II: Atrações temporárias: práticas estéticas em espaços urbanos, criaram um ambiente de descanso público, recuperando a ideia da cesta, e que foi denominado de República do Cochilo. Importa entender a praça como um:

[...] lugar intencional do encontro, da permanência, dos acontecimentos, de práticas sociais, de manifestações da vida urbana e comunitária e de prestígio, e, consequentemente de funções estruturantes e arquiteturas significativas. Lamas (1993, p. 102)

Esta intervenção ocorreu durante o período matutino e vespertino de uma sexta-feira e configurou-se como uma experiência de deriva.

Uma ou várias pessoas que se lançam na deriva renunciam durante um tempo, mais ou menos longo, aos motivos para se deslocar ou agir normalmente em suas relações de trabalho e lazer habituais, para se deixar conduzir pelas solicitações do terreno e pelos encontros que a ele correspondem. Rey apud Debord (2010, p. 111)

            Assim foi possível perceber que a capital de Mato Grosso, que apresenta hoje uma população de mais de 550 mil habitantes e vive em ritmo acelerado, é ainda um lugar com ares de simplicidade, onde o morador de rua ganhou visibilidade, assim como também as pessoas idosas que encontram nos bancos da praça um espaço de conversação.  Alunos que nos transcurso entre casa e escola, acomodam-se pelas muretas e bancos como quem chega em seu território próprio e seguro.     Impossível também não perceber os casais de namorados que fazem do lugar um ponto de encontro. Contudo, eles não pareciam viver as paixões da cidade e do lugar. Tudo parecia monótono, o que nos remete aos situacionistas que valorizam o meio urbano como terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida cotidiana moderna. Jacques (2002, p. 1)
A intervenção estimulou a participação e convidou os sujeitos da praça a manifestarem-se, por escrito, a respeito de diferentes questões. Assim tivemos o Varal do Falatório, onde pessoas registraram desejos e pensamentos que estavam acomodados em seu íntimo. Tais manifestações retrataram demandas que estavam acomodadas a um lugar de não declaração. A atividade permitiu a exposição de sentimentos permeados de grandes angustias, e que foram expressos em palavras chaves, tais como: desigualdade, prepotência, dinheiro, gula, fome, inveja, machismo, amor, etc.
Essa atividade rompeu com o momento de não participação dos cidadãos na construção da cidade, considerando que Cuiabá vive um processo de acelerada urbanização, o que, futuramente exigirá um espírito de interpretação a partir do que apresenta Paola Berenstein Jacques[2]:

 [...] estamos hoje, em um momento de crise da própria noção de cidade, que se torna visível principalmente através das idéias (sic) de não-cidade: seja por congelamento - cidade-museu e patrimonialização desenfreada - seja por difusão - cidade genérica e urbanização generalizada.  (idem)

A partir desta experiência, a praça que víamos sempre pela janela do carro e/ou ônibus e que era o espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude conforme descreve Marc Augé (ano, p. 95) tornou-se espaço de congregação e participação.
Em mesma oportunidade, visitamos um grupo de cuiabanos tradicionais que estão instalados próximo à Praça da República, cujo objetivo é discutir a política local e nacional, e que se auto intitula de "os defensores das reminiscências cuiabanas". O local é denominado de Senadinho.

A turma do Senadinho é composta por um grupo de 31 pessoas, aposentados e representantes de diversas áreas do segmento econômico e social de Cuiabá. Há mais de 40 anos eles se reúnem na garagem da casa de Oriente Tenuta, o fundador, já falecido. A esposa de Oriente Tenuta, dona Elza Tenuta, é a presidente e única a mulher do grupo.[3]

Esse grupo contrasta com os sujeitos da praça. Eles já não estão na condição de simples espectadores a construtores, transformadores e "vivedores" de seus próprios espaços, o que contrariaria qualquer tipo de espetacularização urbana. Jacques (2002, p. 5) Os contrastes advindos da participação sócio-política das pessoas e grupos que vivem a cidade mostram-se mais visíveis quando há disposição para a conversa e para a vivência das paixões, é o que ocorre com  grupo do Senadinho.
            A praça se mostrou como local de transeuntes e de pessoas que fazem dela um lugar transitório ou permanente. A intervenção foi efêmera mas nem por isso deixou de gerar ressonâncias.






BIBLIOGRAFIA

AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. PEREIRA, Maria Lúcia (trad.) Campinas, SP: Papirus, 1994. (Coleção travessia do Século).

JACQUES, P. B. . Urbanismo à deriva: pensamento crítico situacionista. In: VII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, 2002, Salvador, 2002.
                                                                
LAMAS, J. M. R. G. Morfologia urbana e desenho da cidade. 3 ed. Porto - Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para a Ciência e Tecnologia, 1993. (Textos Universitários e Ciências Sociais e Humana).

SILVA, Regina Helena Alves da. Cartografias Urbanas: construindo uma metodologia de apreensão dos usos e apropriações dos espaços da cidade. Visões Urbanas - Cadernos PPG-AU/FAUFBA Vol.V - Número Especial – 2008.

REY, Sandra. Caminhar: experiência estética, desdobramento digital. Tradução: Daniela Kern. Revista Porto Arte: Porto Alegre, v. 17, nº 29, novembro 2010.


[1] Prof.ª Dr.ª Maria Thereza Azevedo.
[2] Paola Berenstein Jacques é professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia. É pesquisadora do CNPq e coordena o grupo de pesquisa Laboratório Urbano.
[3] Disponível em: http://caminhopolitico.blogspot.com.br/2012/08/mauro-mendes-e-recebido-pelo-senadinho.html Acesso em: 09 ago. 2013.